4.28.2008

A Lei, a Televisão e Nós

Há alguns dias um assunto extremamente relevante percorreu, silenciosamente, alguns veículos de comunicação considerados "de referência"; e com grande preocupação os veículos alternativos, como jornais experimentais, observatórios e monitores da imprensa, listas do movimento estudantil.

Na metade do mês de Abril, entrou em vigor a Portaria 1.220/07, que discorre sobre a Classificação Indicativa dos programas televisivos. Essa Portaria menciona a relação entre o conteúdo dos programas e sua classificação para exibição de acordo com faixa etária e horário, em observância ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Até esse ponto, nada de anormal.

Contudo, essas faixas de horário para exibição de programas variam em nosso país, já que o Brasil possui quatro fusos horários. Assim, um programa exibido às 21h (horário de Brasília) aqui em Santa Maria, estaria sendo transmitido às 19h em Rio Branco, capital do Acre. Qual é, precisamente, o problema?


A Globo. Explico: para esse horário (19h), a classificação indicativa só permite programas em duas categorias.
Obras audiovisuais classificadas como (a) livre ou (b) não recomendadas para menores de dez anos: exibição em qualquer horário. Só que, por exemplo, a telenovela da Globo que é transmitida às 21 h (a novela "das oito") tem classificação indicativa bem superior (acredito que seja não recomendada para menores de 14 anos). Logo, a emissora precisaria adequar o programa para ser transmitido em alguns estados da Região Norte do país.

A emissora resolveu reinventar a roda: conseguiu, através de lobby e pressão política, modificar o fuso horário desses estados. Sim, milhões de pessoas terão suas vidas e rotinas alteradas por causa dessa modificação no fuso. De 0 a 10, qual o nível de absurdo disso?
Bom, abaixo segue um texto do Observatório do Direito à Comunicação que aborda essa questão. Ele é bastante elucidativo sobre diversos aspectos dessa matéria de interesse da população e que passou 'silenciosa' pela mídia (alguém viu isso no Jornal Nacional?).


Mudança no fuso horário: quando a submissão vira irresponsabilidade

Diogo Moyses e Cristina Charão, editores do Observatório do Direito à Comunicação

25.04.2008

A submissão do Congresso Nacional e do Governo Federal ao poder das Organizações Globo parece não ter limites. O absurdo da vez é a aprovação pelo Senado (há duas semanas) e a sanção do presidente Lula (na última quinta-feira) da lei que altera o fuso horário nos estados da Região Norte. Com isso, a diferença do horário do Acre e de 46 municípios do Amazonas em relação ao de Brasília cairá de duas para uma hora. Já o Pará ficará todo com o mesmo fuso horário de Brasília. A mudança passa a valer em 60 dias.

A lei, de autoria do senador Tião Viana (PT-AC), foi aprovada no Senado dias após a entrada em vigor dos dispositivos da Portaria 1.220/07 que determinam que as emissoras de TV adaptem suas transmissões aos diferentes fusos horários vigentes no país em função da classificação indicativa dos programas. Regras estas, vale dizer, existentes em qualquer país civilizado.

A justificativa do senador, de que a intenção da alteração é “facilitar o transporte aéreo e a integração com o sistema financeiro nacional”, não passa de embuste. Como diria Mino Carta, é de conhecimento até do mundo mineral que o projeto foi aprovado para que a Globo não tenha que adaptar sua grade de programação nestas regiões ao que determina a Portaria 1.220. Países de dimensões continentais como o nosso (EUA, Canadá, China, Rússia e Austrália) possuem inclusive um número maior de fusos horários do que o Brasil, e este nunca foi um problema para a integração destas nações.

Tudo pela novela

O “problema” da emissora não era sequer tão grande assim. Bastava adequar o conteúdo da chamada “novela das oito” para que esta pudesse ser transmitida as 19h (estaria sendo exibida às 21h pelo horário de Brasília, como hoje acontece). Outras redes nacionais de televisão, como já noticiado pelo Observatório do Direito à Comunicação, possuem hoje uma grade de programação que lhes permite transmitir simultaneamente em todo o país, ou podem adaptá-la sem grandes esforços.

A Globo, entretanto, decidiu criar uma programação “própria” para os estados com fuso diferente de Brasília, onde não mais se transmitiria ao vivo os jogos de futebol realizados no meio da semana. Como responsável pela desagradável mudança - afinal, ninguém quer ver as partidas em VT -, a Globo apontou justamente a classificação indicativa. Não disse, contudo, o mais importante: que transmissões esportivas – assim como telejornais – não passam por classificação e podem ser transmitidos em qualquer horário. A decisão de não transmitir os jogos foi exclusivamente da empresa. Chantagem de grande impacto nos parlamentares, pelo menos naqueles que votaram sabendo do que se tratava a matéria em pauta.

Mas para que adaptar a programação se, afinal, é bem mais fácil, rápido e econômico para a empresa mudar o fuso horário destas regiões? O Ombuds PE, que faz o monitoramento permanente da mídia, referindo-se ao fato, lembrou com propriedade a anedota do prefeito que, para instalar uma caixa d’água num lugar inadequado, cogitou revogar a lei da gravidade. Com a diferença que, no caso em questão, Congresso e Governo Federal foram até o fim.

Constava da versão original do PL a realização de plebiscito popular para permitir uma decisão soberana de seus habitantes em relação à alteração. A proposta, entretanto, foi suprimida na última versão do projeto, aprovado na típica 'calada da noite', sem qualquer aviso prévio, entrando na pauta como se fosse matéria de segurança nacional.

Irresponsabilidade

A mudança irá afetar de que maneira as populações dessas regiões? Para essa questão - a mais relevante, é evidente - não há respostas. Não se trata, a priori, de ser contra possíveis alterações no fuso horário destas regiões. Trata-se, sim, de afirmar que sem amplo debate não é possível dimensionar seu impacto, tornando a sanção do projeto pelo Presidente da República ato da mais profunda irresponsabilidade.

A necessidade óbvia de que algo dessa natureza passe por discussão com a comunidade científica - pois trará impactos do ponto de vista biológico, social e econômico - foi desconsiderada. Negou-se, ainda, a importância de se analisar exemplos recentes como o que causou prejuízos aos habitantes de Portugal, que foi obrigado a retornar ao seu fuso horário original após tê-lo alterado em 1992 (quando de seu ingresso na União Européia).

Congresso e governo também desconsideraram o potencial aumento no consumo de energia ocasionado pela mudança. Estes estados da federação, vale lembrar, não promovem o chamado “horário de verão”, já que estudos evidenciam - e o governo sabe disso, claro - que adiantar em uma hora o relógio nestas regiões não promoveria a economia de energia, mas sim aumentaria seu consumo.

As questões vão além: geógrafos e médicos especialistas em saúde pública ouvidos pelo Observatório do Direito à Comunicação apontam prováveis impactos no metabolismo da população dessas regiões, em especial nas crianças, com possíveis resultados negativos, como a perda de rendimento nas atividades escolares. Com a sanção da medida, parcela substancial destas comunidades terá suas primeiras atividades do dia ainda no escuro, com alterações biológicas que podem provocar diferentes transtornos de saúde, ocasionando, por exemplo, aumento no consumo de medicamentos estimulantes e relaxantes.

Tudo isso foi ignorado pelos parlamentares e por Lula, em nome da novela das oito.

A irresponsabilidade e submissão dos que participaram da aprovação e sanção desta lei, por sorte, pode ser parcialmente amenizada por algo muito mais poderoso que a Globo: a natureza. Em uma região marcada pelo ritmo da floresta e do Equador, a vida continuará correndo segundo as exatas 12 horas em que o sol ilumina o céu todos os dias do ano. Sim, caros senadores, caro presidente: quem acorda os brasileiros da Região Norte é o sol, não o Bom Dia Brasil. A diferença é que agora estas crianças, no que diz respeito aos seus direitos, valem oficialmente uma hora a menos.

Fonte: Observatório do Direito à Comunicação

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